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2018

Concurso, Desenho

 
 

Ficha técnica

Ano do concurso:
2018

Arquitetura e Paisagismo:
Cesar Shundi Iwamizu
Eduardo Pereira Gurian
Helena Aparecida Ayoub Silva
Raul Isidoro Pereira

Alexandre Freitas dos Santos
André Desani Ariza
Cecília Prudencio Torres
Fernanda Britto
Francesco Perrotta Bosch
Gabriel Ernesto Moura Solorzano
Gustavo Madalosso Kerr
Leandro Fontana
Leonardo Nakaoka Nakandakari
Thomas de Almeida Ho

Estudantes:
Augusto Longarine
Fernanda Bianchi Neves Taques Bittencourt
Nathalia Lima

Orla Livre
Brasília, DF, Brasil

Essa proposta para o Masterplan da Orla do Paranoá demanda compreender, respeitar e seguir o que Sophia S. Telles definiu como “o sentido lírico que Lucio Costa confere à paisagem”. Entre cultura e natureza, o artífice da arquitetura moderna brasileira estabelece uma delicada relação de proximidade e distanciamento, de coexistência e separação, de presença e lonjura. São duas as imagens mais elucidativas do papel que Dr. Lucio conferia ao Paranoá na concepção de Brasília: o contorno incompleto do lago que aparece no segundo e no terceiro croquis da Memória Descritiva do Plano Piloto, e a vista do Eixo Monumental que temos a partir da Plataforma Rodoviária ou da Torre de TV. Em um duo com o lago Paranoá que o Plano Piloto foi concebido como “uma solução possível, que não foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta”. Entretanto, tal como numa composição pictórica, o lago sempre esteve em segundo plano em relação à cidade-capital – “o lugar da natureza como o fundo latente da cultura”. O Paranoá era a parte mais representativa da natureza indômita a ser resguardada: o lago era externo ao determinismo do desenho geométrico. Em comunhão com “cerrado deserto e de encontro a um céu imenso, como em pleno mar”, o lago Paranoá origina o horizonte. Horizonte, o qual é concomitantemente origem e destinação deste espaço moderno: o traçado de Brasília emerge sutilmente do solo agreste mas dele não se destaca, pelo contrário, o ponto de fuga da perspectiva da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes encontra-se exatamente na vestal natureza. Ao mesmo tempo, precisa-se ter em vista o reconhecimento feito a posteriori pelo próprio Dr. Lucio com relação à cidade que concebeu. Em 1984, em entrevista dada na Plataforma Rodoviária, ele reconheceu candidamente a diferença entre a cidade imaginada e a cidade existente: “Isto tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para este centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente. […] Eles estão com a razão, eu é que estava errado. eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. […] Na verdade, o sonho foi menor do que a realidade. A realidade foi maior, mais bela”. Tal confissão é, por um lado, a constatação de que de modos imprevistos pelo demiurgo, o qual não se resigna com tal fato, mas generosamente maravilha-se. Porém, a declaração pode também ser lida como um salvo conduto para os projetistas no porvir: uma reconhecença da perpétua incompletude do trabalho urbano que é pensar uma capital viva. Elucidativo é o argumento numérico: a cidade planejada para ter entre 500 e 700 mil habitantes, hoje tem cerca de 3 milhões de moradores. A ocupação metropolitana da capital federal deu-se muito além do Plano Piloto. A casta e  idílica imagem do entorno natural pouco corresponde à condição atual do território do Distrito Federal. A Brasília da década de 10 do século 21 demanda exatamente a posse daquilo que Dr. Lucio deixou como pano de fundo ao “ato deliberado de posse, um gesto de sentido ainda desbravador, nos moles da tradição colonial”.

O âmago deste concurso está numa questão já percebida por Dr. Lucio e que tem nas margens do lago Paranoá um dos seus principais palcos de conflito. Ainda em 1987, o grande arquiteto deu indicações dos estágios a serem cumpridos para conciliar a manutenção do espírito inaugural de Brasília com o fomento à dinâmica do presente: “chegou o momento de definir e de delimitar a futura volumetria espacial da cidade, ou seja a relação entre o verde das áreas a serem mantidas in natura (ou cultivadas como campos, arvoredos e bosques) e o branco das áreas a serem edificadas”. No fundo, esta é uma aceitação da impossibilidade da total dissolução da área residencial em meio a vegetação tal como almejado na Memória Descritiva. Os bairros ao redor do lago Paranoá são muito mais densos do que os “setores ilhados, cercados de arvoredo e campo” ou das “casas avulsas de alto padrão arquitetônico” com “afastamento mínimo de um quilômetro de casa a casa”. Lucio Costa tinha o desejo inicial de evitar a ocupação ao redor do lago Paranoá, salvo exceção ao Palácio da Alvorada, ao Hotel, a clubes esportivos e náuticos, a restaurantes e áreas de lazer coletivas. Os parâmetros paisagísticos do projeto de 1957 objetivavam a dissipação de toda configuração visivelmente urbana para as áreas não-monumentais. As edificações residenciais não se articulariam por meio de ruas, calçadas, meios-fios – tais elementos urbanos eram quase ausentes. Intentava-se o distanciamento entre casas, privilegiando a intimidade de cada ente. Deveria, portanto, prevalecer a visão contemplativa da paisagem, desejosamente agreste. Isso não aconteceu. A realidade demonstra uma profusão de residências de alto padrão, lado a lado, com lotes bem determinados. As casas mais próximas do lago lotearam as margens da orla, delimitando-a com muros, instalando seus píeres particulares. Ao redor do Paranoá, pouco restou daquele imaginário bucólico exordial.

Para restabelecer o controle público da envoltória da bacia d’água, importante foi o ato de desapropriação de grande parte da faixa pública de 30 metros da orla do Lago Paranoá, correspondente a Área de Preservação Permanente, tendo também como fundamentação a Portaria nº314 do IPHAN, de 8 de outubro de 1992, que instituía “o acesso público à orla do lago em todo seu perímetro”. Se é impossível estabelecer totalmente os desejos formulados na Memória Descritiva, é plenamente possível e desejável restituir o usufruto público e popular das margens do lago. Propomos, portanto, um plano estratégico e sistemático de toda envoltória do Paranoá. Entre o respeito à concepção inicial de Lucio Costa e as respostas à condição contemporânea, é a conciliação que ambicionamos.

1. A relação com o horizonte particulariza o Plano Piloto de Brasília em relação a qualquer outro projeto urbano já feito. Por isso, é essencial a horizontalidade dos novos elementos arquitetônicos e urbanísticos a serem implementados ao redor do lago Paranoá.

2. Estar na orla. Caminhar linearmente com um pé pisando na terra ou areia seca e com o outro afundando sob a superfície da água. Descalços temos contato sem intermediação com a natureza. Tal experiência tátil com a água é fundante para o Brasil e para o modo de vida de grande parte dos brasileiros, mas ainda muito retraída no cotidiano do brasiliense. Uma relação direta com a margem do Paranoá que este projeto busca estabelecer, como meio de potencializar a compreensão da paisagem do Planalto Central.

3. A delicadeza com a qual Dr. Lucio estabelecia a relação entre cidade e natureza precisa ser potencializada, a fim de ser convertida em uma ação projetual que trate paisagismo e urbanismo como disciplinas integradas. Não cabe mais restringir a compreensão do trabalho sobre a paisagem como a criação de parques que fariam contraponto com ambientes urbanos densamente habitados. Esse ainda recorrente raciocínio caracteriza a natureza, sob um viés moralista, como antídoto ao agressivo ambiente das cidades. Mas esta é uma lógica excludente. Nela, a paisagem é vista como o contrário das edificações, infraestrutura e tecnologia. O antropólogo francês Bruno Latour observa na contemporaneidade uma mudança de paradigma em direção à dissolução da comumente dicotomia entre natural e artificial. Neste início de século 21, o termo paisagem deve ser entendido como território para se operar sobre. Tal como os arquitetos espanhóis Iñaki Abalos e Juan Herreros esclarecem: “todo lugar passou a ser entendido como uma paisagem em si, natural ou artificial, deixando de ser aquele fundo neutro sobre o qual se destacavam objetos arquitetônicos artificiais […], tornando-se objeto de interesse primário, foco de atenção do arquiteto. Com essa mudança no olhar, a paisagem perde sua inércia e passa a ser objeto de transformações possíveis; a paisagem passa a ser aquilo que podemos projetar”. Não é fortuito que, em alguns países de língua inglesa, a denominação da disciplina responsável pelo projeto nessas condições é landscape urbanism, motivando a dialética entre as duas práticas.

4. O professor norte-americano Charles Waldheim sintetiza  landscape urbanism como disciplina responsável pela organização de superfícies horizontais. Nela, o trabalho em espaços públicos pontuais é substituído pela atenção às paisagens infraestruturais de larga escala, como mecanismos reordenadores das cidades. O papel desse novo paisagista amplia-se para a compressão conceitual de lugares, territórios, ecossistemas, relações, infraestruturas. Como organizador de grandes espaços urbanos.

5. O lago Paranoá guarda nele um grande potencial como articulador da dinâmica urbana do Distrito Federal, especialmente em termos ecológicos e de mobilidade urbana.

6. Propomos que, ambientalmente, o lago Paranoá torne-se elemento estruturante de caráter centrípeto. Isto é, como núcleo conector dos ecossistemas existentes e irradiador para a instituição de novas áreas verdes.

7. Por sua vez, enquanto superfície de transporte, o lago Paranoá torne-se elemento estruturante de caráter centrífugo. Ou seja, que ele seja aproveitado como hidrovia, com percursos regulares integrados ao sistema de transporte coletivo da capital federal.

8. A paisagem passa a ser vista como meio capaz de responder às constantes e inevitáveis transformações do espaço urbano atual, condicionadas por mudanças eventuais de caráter econômico, político ou social. O lago Paranoá pode reestabelecer e colaborar com sistemas ecológicos mais amplos no Planalto Central. O cerrado não deve ser compreendido como ecossistema estável e fechado conforme uma estrutura hierárquica e linear de evolução. Isto é, para que se sustente a longo prazo, o Masterplan da Orla do lago Paranoá deve prever adaptabilidade conforme o tempo, considerando a ocorrência de distúrbios naturais e que, mesmo assim, será possível o restabelecimento do lugar.

9. Uma diretriz fundamental é a proteção e a recuperação ambiental das Áreas de Preservação Permanente (APPs). Isso ocorrerá por dois vetores. O primeiro é a implementação e o fortalecimento da vegetação em nascentes e fozes de rios e riachos que desembocam no Lago Paranoá. O segundo está relacionado à faixa pública de 30 metros da orla do lago, onde haverá um tratamento das espécies vegetais locais e próprias à borda da bacia d’água.

10. O enriquecimento da biodiversidade de acordo com as características próprias ao cerrado. O Parque Ecológico que irradiará em toda a envoltória do lago será composto por três tipos de formações vegetais: Campo, Mata e Savana.

11. O trabalho paisagístico deve ter um caráter pedagógico. A educação ambiental é fundamental para a manutenção do bioma a longo prazo. Faz-se imperativo apresentar o significado, a beleza e importância do cerrado, ecossistema sob risco de extinção. É, portanto, imprescindível a presença de espécies do cerrado nas margens do Paranoá como registro e testemunho didático para toda sociedade.

12. Parques Lineares serão os protagonistas no Masterplan da Orla do lago Paranoá. Eles operarão como costuras urbano-paisagísticas. Concomitantemente assumem tanto um papel fundamental na recuperação da biodiversidade quanto como campo infraestrutural capaz de abrigar diferentes programas, modificáveis e ajustáveis ao longo do tempo, assim como acomodariam atividades efêmeras, planejadas ou não.

13. Para tanto, demanda-se a estruturação de um sistema com tipologias de estruturas arquitetônicas e naturais a serem implantadas ao redor do lago Paranoá. Em outros termos, tal estratégia consiste na criação de instrumentos de intervenção aplicáveis em qualquer margem do lago, respeitando as especificidades geográficas de cada localidade. Organizamos tal sistema a partir de quatro grandes categorias: Vegetação (VE), caminhos (CA), pavilhões (PA) e água (AG).

14. Os tipos de caminhos estabelecidos diferenciam-se segundo uma hierarquia de fluxo de uso. Consequentemente, muito do entendimento espacial que os visitantes terão dos Parques Lineares será proveniente do caráter estabelecido de tais percursos. Os caminhos são o instrumento de desenho mais potente na configuração de cada área da orla.

15. De modo geral, os caminhos são compostos por pisos permeáveis, atendendo a natural necessidade de recarregar o lençol freático.

16. O transporte por bicicleta é incentivado com a criação de ciclovias, que virão a se constituir em um anel de transporte metropolitano ao redor de todo o lago. A bicicleta não somente como meio de transporte para o lazer, mas como alternativa não poluente para o uso cotidiano.

17. Brasília foi concebida por Lucio Costa para ser uma cidade rodoviária e não é viável que deixe de ser assim por um longo período. Por isso são criados bolsões de estacionamento em áreas próximas a equipamentos de maior porte, como estações hidroviárias, marinas ou praças maiores. O objetivo é o afastamento do tráfego recorrente e intenso dos veículos do miolo dessas áreas do Parque Linear. Incentiva-se o acesso, mas não a mistura de carros e pedestres.

18. Fundamentais para a transição entre o ambiente urbano e o ambiente natural serão as alamedas. Elas ocupam, em sua maioria, os espaços entre os agrupamentos de lotes conhecidos como ponta de picolé. Tais arruamentos hoje precários serão convertidos em elementos de estruturação da área terrestre, conectando as avenidas principais com a orla. Também ligarão fragmentos vegetais, dando origem a contínuos arbóreos, isto é, corredores ecológicos no interior da malha urbana.

19. Pavilhões e quiosques pontuarão os Parques Lineares, como suporte ao usufruto e catalisadores de eventos. A distância entre tais construções de pequeno porte serão, em média, 150 metros, o que garante a contínua presença de pessoas, de atividades, não deixando áreas ermas e garantindo a segurança do local. Bicicletários e dispositivos de empréstimo de bicicletas darão suporte à malha cicloviária na envoltória do lago. Postos de apoio terão toaletes, chuveiros para banho e postos médicos para os usuários dos parques.

20. A relação direta com a água se dará em equipamentos públicos que seguem três diferentes índoles: contemplativa, lazer ou transporte.

21. Os mirantes são locais de apreciação da paisagem, de reconhecimento do lago Paranoá, de reflexão acerca da natureza, de como ela foi compreendida no projeto original de Brasília e de como ela se torna ativa no Masterplan da Orla do Lago Paranoá.

22. O ato de banhar-se poderá ocorrer de dois modos: pelas praias ou pelas piscinas. Estes serão locais de lazer, lúdicos, de convergência de pessoas, de relação direta e intrínseca com a água do Paranoá. As piscinas serão em estruturas suspensas que avançam sobre as bordas do lago. As piscinas serão marcos nas margens, vindo a ter um papel importante no imaginário do Paranoá pelos brasilienses.

23. Enquanto superfície de transporte hidroviário, o lago Paranoá terá três tipos de equipamentos para parada de veículos náuticos. As marinas serão destinadas a barcos, lanchas e iates de particulares. Devem ser pensadas tanto para aqueles que utilizam tais embarcações para o lazer, quanto para aqueles que fazem delas seu meio de sustento (pesca) ou para serviços públicos (polícia, bombeiros, marinha, etc). Os atracadouros são menores e mais singelos. Tem funções eventuais de apoio a chegadas e partidas. As estações hidroviárias são instalações de maior porte e de importância para todo o sistema de transporte do Distrito Federal. Delas partirão dois gêneros de linhas: regulares de uso cotidiano e metropolitano, e outra para fins turísticos. Navegável em todos os sentidos, o lago Paranoá tornará a superfície de amparo a múltiplas vias de conexão. Tal como um vaporetto de Veneza ou uma barca da Baía de Guanabara, as embarcações de transporte coletivo poderão reinventar a dinâmica de deslocamentos da capital.